quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019


Orixá e Sambas – Enredo...   
              

Escolas pecam pela carnavalização do que deveria ser mistério

                                                                                                             De: Nei Lopes *
       Parece que foi com o Enredo: Festa dos Deuses afro - brasileiros, da Escola de Samba Em Cima da Hora, em 1974, que os enredos sobre orixás e outras divindades africanas viraram moda no carnaval carioca . Tão em moda que, de lá pra cá, no Rio e São Paulo, não há ano em que não se volte ao tema, às vezes em doses triplas. Mas a história vem de mais longe.
   Em 1938, a coreógrafa e bailarina afro-americano Katherine Dunham, então com 28 anos de idade, motivada pelo trabalho da antropóloga, também afro-americano, Zora Neale Huston – que, no mesmo ano, depois de muita pesquisa, publicava o livro Tell My Horse, sobre comunidades negras da Jamaica – viajava pela primeira vez a Cuba. A viagem tinha objetivos declaradamente artísticos, mas acabou ganhando caráter religioso, já que durante sua estada em Havana, Miss Dunham fez-se iniciar na religião dos orixás, lá genericamente chamada santería.
    A partir daí, o trabalho da coreógrafa, que já baseava em séria pesquisa etnográfica fez o mundo reconhecer a beleza e o valor das danças de origem africana, abrindo caminho para a consolidação de uma tradição coreográfica e o surgimento de uma Dança negra contemporânea.
    Em 1952, Katherine Dunham, em visita ao Brasil, foi protagonista de um episódio de discriminação racial vergonhosa, porém de importantes consequências, pois foi o estopim para promulgação da primeira Lei Afonso Arinos. Mas, além disso, sua presença entre nós legitimava as exteriorizações do culto aos orixás jeje- nagôs (oriundo do eixo Nigéria/Benim), fazendo com que danças, trajes cerimoniais, cânticos rituais, atabaques e agogôs saíssem da clandestinidade para chegar aos palcos do teatro musicado.
    Não podemos assegurar; mas, muito provavelmente, levada pelo núcleo dirigente do operoso Teatro Experimental do Negro, à frente o saudoso artista e ativista Abdias Nascimento, Kaye Dunn (seu nome literário) deve Ter conhecido o Terreiro do célebre Joãozinho da Goméia, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. E lá, assim como sua discípula Mercedes Baptista, mãe da Dança afro no Brasil, deve ter assimilado muita matéria-prima para sua Obra.
    A coreógrafa americana certamente sabia que, no Haiti, um dos vocábulos que definem o conceito de Orixá é mystè, forma local para o francês mystère. Porque toda entidade espiritual africana é, em essência, um mistério, um sagrado, um dogma, a ser tratada com respeito, precaução e cautela – atividade da qual, na atualidade, o povo das Escolas de Samba, tanto no Rio quanto em São Paulo, parece que vem se esquecendo.
    Em busca do efeito e desprezando a Essência, as e Escolas dão, desde a fatídica década de 70, grande ênfase aos enredos de temática africana. Mas quase sempre pecam em dois “quesitos”: primeiro, na carnavalização do que deveria ser mistério; depois, na reprodução da falsa ideia de que a História da África sempre se contaria a partir do escravismo, como se nada lá houvesse ocorrido antes da chegada dos primeiros europeus, no Século XV.
    No oitavo Século da Era Cristã, viajantes árabes já se surpreendiam, no oeste africano, com a abundância de ouro, sustentáculo de um centralizado e poderoso império que efetivamente atuava como “intermediário” entre as áreas de produção, ao sul, e as do consumo, ao norte do Saara e às margens do Mediterrâneo. Esse Império era o Antigo Gana, fundado por negros do grupo étnico soninquê, aparentado aos mandingas, o qual, numa sequência histórica, deu lugar aos também poderosos Mali e Songai.
    Igualmente fortes e pujantes foram, antes do escravismo europeu, os Estados Axante (na atual Gana); Ifé, Benin, Oió (Nigéria); Mossi, Dagomba (Burkina Fasso); além, florescidos na Etiópia, no atual Zimbábue, e no antigo Congo, etc.
    A História desses reinos e impérios, com seus heróis e vilões, deuses e demônios, musas e rainhas, bandeiras e estandartes, tambores e chocalhos, está esperando para ser contada nas “avenidas” do Rio e na paulista. Está tudo lá nos oito volumes da História Geral da África, publicada pela UNESCO em parceria com MEC desde 2011, e integralmente disponibilizada na internet.
    Então, meu povão... Escravidão já era! A grande Katherine Dunham e Seu João da Goméia já descansam em paz! Os Orixás também precisam descansar!
    Alô, meu povão, se liga!                     
                                                 * Nei Lopes / Produtor Cultural e Compositor musical

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