Orixá e Sambas – Enredo...
Escolas pecam pela carnavalização do que deveria ser mistério
De: Nei Lopes *
Parece
que foi com o Enredo: Festa dos Deuses afro - brasileiros, da Escola de Samba Em
Cima da Hora, em 1974, que os enredos sobre orixás e outras divindades
africanas viraram moda no carnaval carioca . Tão em moda que, de lá pra cá, no
Rio e São Paulo, não há ano em que não se volte ao tema, às vezes em doses
triplas. Mas a história vem de mais longe.
Em
1938, a coreógrafa e bailarina afro-americano Katherine Dunham, então com 28
anos de idade, motivada pelo trabalho da antropóloga, também afro-americano,
Zora Neale Huston – que, no mesmo ano, depois de muita pesquisa, publicava o
livro Tell My Horse, sobre
comunidades negras da Jamaica – viajava pela primeira vez a Cuba. A viagem
tinha objetivos declaradamente artísticos, mas acabou ganhando caráter
religioso, já que durante sua estada em Havana, Miss Dunham fez-se iniciar na
religião dos orixás, lá genericamente chamada santería.
A
partir daí, o trabalho da coreógrafa, que já baseava em séria pesquisa
etnográfica fez o mundo reconhecer a beleza e o valor das danças de origem
africana, abrindo caminho para a consolidação de uma tradição coreográfica e o
surgimento de uma Dança negra contemporânea.
Em
1952, Katherine Dunham, em visita ao Brasil, foi protagonista de um episódio de
discriminação racial vergonhosa, porém de importantes consequências, pois foi o
estopim para promulgação da primeira Lei Afonso Arinos. Mas, além disso, sua
presença entre nós legitimava as exteriorizações do culto aos orixás jeje-
nagôs (oriundo do eixo Nigéria/Benim), fazendo com que danças, trajes
cerimoniais, cânticos rituais, atabaques e agogôs saíssem da clandestinidade
para chegar aos palcos do teatro musicado.
Não
podemos assegurar; mas, muito provavelmente, levada pelo núcleo dirigente do
operoso Teatro Experimental do Negro, à frente o saudoso artista e ativista
Abdias Nascimento, Kaye Dunn (seu nome literário) deve Ter conhecido o Terreiro
do célebre Joãozinho da Goméia, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. E
lá, assim como sua discípula Mercedes Baptista, mãe da Dança afro no Brasil,
deve ter assimilado muita matéria-prima para sua Obra.
A
coreógrafa americana certamente sabia que, no Haiti, um dos vocábulos que
definem o conceito de Orixá é mystè, forma local para o francês mystère. Porque
toda entidade espiritual africana é, em essência, um mistério, um sagrado, um
dogma, a ser tratada com respeito, precaução e cautela – atividade da qual, na
atualidade, o povo das Escolas de Samba, tanto no Rio quanto em São Paulo,
parece que vem se esquecendo.
Em
busca do efeito e desprezando a Essência, as e Escolas dão, desde a fatídica
década de 70, grande ênfase aos enredos de temática africana. Mas quase sempre
pecam em dois “quesitos”: primeiro, na carnavalização do que deveria ser
mistério; depois, na reprodução da falsa ideia de que a História da África
sempre se contaria a partir do escravismo, como se nada lá houvesse ocorrido
antes da chegada dos primeiros europeus, no Século
XV.
No
oitavo Século da Era Cristã, viajantes árabes já se surpreendiam, no oeste
africano, com a abundância de ouro, sustentáculo de um centralizado e poderoso
império que efetivamente atuava como “intermediário” entre as áreas de
produção, ao sul, e as do consumo, ao norte do Saara e às margens do
Mediterrâneo. Esse Império era o Antigo Gana, fundado por negros do grupo
étnico soninquê, aparentado aos mandingas, o qual, numa sequência histórica,
deu lugar aos também poderosos Mali e Songai.
Igualmente fortes e pujantes foram, antes do escravismo europeu, os
Estados Axante (na atual Gana); Ifé, Benin, Oió (Nigéria); Mossi, Dagomba
(Burkina Fasso); além, florescidos na Etiópia, no atual Zimbábue, e no antigo
Congo, etc.
A
História desses reinos e impérios, com seus heróis e vilões, deuses e demônios,
musas e rainhas, bandeiras e estandartes, tambores e chocalhos, está esperando
para ser contada nas “avenidas” do Rio e na paulista. Está tudo lá nos oito
volumes da História Geral da África,
publicada pela UNESCO em parceria
com MEC desde 2011, e integralmente
disponibilizada na internet.
Então,
meu povão... Escravidão já era! A grande Katherine Dunham e Seu João da Goméia
já descansam em paz! Os Orixás também precisam descansar!
Alô,
meu povão, se liga!
*
Nei Lopes / Produtor
Cultural e Compositor musical
Nenhum comentário:
Postar um comentário