Brasil viveu um processo de amnésia nacional sobre a escravidão, diz historiadora/Júlia Dias Carneiro Da BBC Brasil no Rio de Janeiro/ 10-Maio-18.
O
que o Estado fez, foi retardar a Lei Áurea a tal limite que ela acabou custando
a própria vida do Império no Brasil. Um ano e meio após a abolição da
escravidão, o Império acabou.
“A
abolição foi um processo de luta da sociedade brasileira. Não foi uma lei. Não
foi um presente da princesa Isabel...”
Sancionada
pela princesa Isabel no dia 13 de maio de 1888, a lei que aboliu a escravidão
após mais de três séculos de trabalho forçado no Brasil "saiu muito curta,
muito pequena, muito conservadora", descreve Lilia Moritz Schwarcz.
Em
entrevista à BBC Brasil, a historiadora diz que as consequências dessa virada
de página abrupta, sem políticas para incluir os ex-escravos à sociedade, são
sofridas até hoje.
"O
que vemos hoje no país é uma recriação, uma reconstrução do racismo estrutural.
Nós não somos só vítimas do passado. O que nós temos feito nesses 130 anos é
não apenas dar continuidade, mas radicalizar o racismo estrutural",
considera Schwarcz, professora do Departamento de Antropologia da USP e autora,
entre outros livros, de O Espetáculo das Raças, As Barbas do
Imperador, Racismo no Brasil e Brasil: uma biografia.
Como parte dos eventos para marcar os
130 anos da abolição, Schwarcz lança nesta sexta-feira (11/05) o Dicionário
da Escravidão e Liberdade - 50 textos críticos (Companhia das Letras), em
coautoria com o historiador Flávio dos Santos Gomes. Schwarcz é também co-curadora
da exposição Histórias Afro - Atlânticas, que será aberta no Masp e no Instituto
Tomie Ohtake, em São Paulo, no fim de junho.
"Estamos politizando essa data e
deixando bem claro que é preciso lembrar para não esquecer. Mas não é possível
celebrar", afirma.
Leia abaixo os principais trechos da
entrevista.
BBC
Brasil - Na sua visão, nesses 130 anos desde a abolição, no que o país avançou
e no que está parado?
Lilia Schwarcz - Não
há motivo algum para celebrar. O Brasil foi o ultimo país do Ocidente a abolir
a escravidão. Às vezes as pessoas falam que foi o último das Américas, mas não.
De fato, era chamado na época de 'retardão'. Tardou demais. As estatísticas
oscilam, mas indicam que o país teria recebido entre 38% a 44% da quantidade
absoluta de africanos obrigados a deixar o continente. E teve escravos em todo
o seu território, diferente dos EUA, por exemplo, que no Sul tinha um modelo
semelhante ao nosso, mas no norte tinha outro modelo econômico.
Quando veio a Lei Áurea, em 1888, ela
saiu muito curtinha, muito pequena, muito conservadora. "Não há mais
escravos no Brasil, revogam-se as posições em contrário". Corria no
plenário uma série de propostas, algumas ainda mais conservadoras, outras mais
progressistas.
BBC Brasil -
Como esses grupos mais conservadores reagiram à abolição?
Lilia Schwarcz -
A queda imediata do Império (é resultado da reação desses grupos). A Lei Áurea
foi a lei mais popular do Império e a última. Como não se previram indenizações,
os grandes produtores de café, até então vinculados ao Império, se bandearam
para as fileiras dos republicanos. A abolição foi um processo de luta da
sociedade brasileira. Não foi uma lei. Não foi um presente da princesa
(Isabel), como romanticamente se diz. Muitos setores de classe média e de
profissionais liberais aderiram à causa abolicionista, que vira suprapartidária
na década de 1880. É importante destacar sobre tudo a atuação dos escravizados,
dos negros, dos libertos, que pressionaram muito o tempo todo, seja por
insurreições, seja por rebeliões coletivas, rebelião individual, suicídios,
envenenamentos.
BBC Brasil -
Qual foi o simbolismo da lei no momento em que foi assinada?
Lilia Schwarcz - A
assinatura do documento foi um ritual caprichadíssimo. Para se ter uma ideia,
foram criados tipos novos para a composição da Lei Áurea. O pai do (escritor)
Lima Barreto, João Henriques, participou de um grupo de tipógrafos que estavam
emocionados com a lei, e compuseram tipos novos para o documento, assinado pela
princesa com uma caneta valiosíssima. Todo o ritual teve muito apelo popular. A
famosa foto da época (de uma multidão reunida do lado de fora do Paço Imperial,
no Centro do Rio, para a assinatura da lei), mostra que a população compareceu,
e é possível reconhecer bandeiras de irmandades negras que foram comemorar a
abolição.
O ritual tinha tudo para encantar, e
encantou. Tanto que mais tarde vimos a população liberta conformar a Guarda
Negra, que era contra a República e a favor do Império. Hoje, muita gente pode
achar isso uma grande contradição. Não é. Na época, a compreensão era que o
Império tinha garantido o final da escravidão, e ninguém sabia o que viria com
a República. Havia muito medo de projetos de reescravização. Estava tudo muito
instável, nebuloso. Hoje, sabemos que o ritual era parte da estratégia de dom
Pedro 2º, que não estava no país, para garantir o Terceiro Reinado nas mãos de
Isabel. A ideia era que a lei tornaria Isabel tão popular que impediria os
projetos republicanos e garantiria a sucessão e manutenção do regime
monárquico. O que não aconteceu. Mas o ritual foi realizado com grande pompa e
circunstância, com o objetivo de fazer emocionar, e de fato emocionou.
BBC Brasil -
Quais eram os principais vícios da lei?
Lilia Schwarcz -
A lei simplesmente abolia. Dizia que a partir desta data não há mais escravos
no Brasil. Ponto final.
A República, que viria um ano e meio
depois, tentaria colocar uma pedra no tema da escravidão. Como se tivesse
ficado morto no passado junto com o Império. Temos um hino da República, aquele
que canta "liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós". E há uma
estrofe que diz: "Nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão
nobre país". Ou seja, um ano e meio depois, (os republicanos) afirmavam
não acreditar mais (que tivesse havido escravidão). Era um processo de amnésia
nacional.
Até 12 de Maio de 2018, o Arquivo Nacional, no Rio
de Janeiro, recebe uma série de eventos para marcar os 130 da abolição da
escravatura no Brasil. O evento faz parte do calendário de comemoração dos 180
anos do Arquivo. Confira nessa matéria do Centro
de Informação das Nações Unidas para o Brasil (UNIC Rio): bit.ly/arquivo130.
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